domingo, 3 de outubro de 2010

Casa de Louças

Acordei com o caminho das garras
na porcelana ainda pastosa do pescoço.
Vi através do espelho as noites
escritas na órbita
do meu olho. Silêncios que escolho
adotando vertigens inexprimíveis.
Solo da imensidão
onde o mundo só existe neste
centímetro entre a língua
e a violação,
solto na vermelhidão, no porte
do ventre.
Acostumada a excessos,
nada é suficiente ou sobra,
os trajetos da boca
rasgando lábios ampliam
a lascívia da gula,
gritos de avesso arrebatado
costuram dúbio e sinuoso
o músculo viscoso da língua
com poros de agulha.
Pétala fagulha na forja dos olhos
formigando venenos de taturana
mãos de coragem avançam poros
dedos sugados
pela clandestinidade afiada
das próprias arestas
inauguram cheiros pólens especiarias
e o néctar da frestas
dobras e raspas
de canelas entrelaçadas no aço
incandescente das panelas. Rangendo
goelas, soerguida em tua sela
bocas e dentes e a virulência canibal
batendo janelas. O dedo em anzol
passeia em busca
do líquido em festa,
repousando ondulações mamíferas
na polpa linguística, fisga
o assoalho da boca
trazendo a ponta da outra
lígula ao fundo
do ouvido para tocar
de leve o cérebro cinza
que fervido num zumbido se vinga
escorrendo tintas.
Patas descascam peles
derretendo maquiagens internas o
sangue crescente
do termômetro molda o vidro
e a chama triangular esculpida
no favo quente das velas
dos sentidos.
Súbitos sumos em sentinela e os
frutos amadurecem lentamente,
comem as derradeiras membranas florais
da primavera. O chão se rompe,
maxilar desabrochado no rasto
dos teus passos, como quem mastiga
carne tenra de longas esperas.
Coração marinado na saliva furtiva,
ração de gosto apurado,
grão de razão torneado no barro ágil
da sensualidade.
O vapor do raciocínio, neblina
desfalecida na agudeza do
espírito, artesão
ao avesso do ser que pensa
está inteligência de prensa no gozo,
demônio cúmplice urdido no ferrão do olho para
o uso completo do corpo.
A lógica dos cacos
a fusão complexa no calor da febre
a desnaturação das arrogâncias, rombo
que permite a penetração,
cuspindo cóleras e súplicas
em fuga espontânea
arremessando chinelos e
convenções dominicais
duvidando da autenticidade de qualquer
possibilidade genuína de paz.
As coleiras dos braços e pernas
fechadas em garras
engalfinhando óleos corporais essenciais
é sagacidade
fugaz,
confessa Mea culpa.
A ironia soberana vaza o
sarcasmo do riso
sobre a culpa.
Um risco na medula sagrando
a nuca ao pó
herético, lambendo-me os pés em batismo
lascivo e úmido
Visgo
autoritário estético submisso
e a astúcia do erro
atravessando a verdade
as varas da vontade
atravessando o desconhecido
a força pontiaguda
atravessando a pele fina da velocidade
a devassidão
atravessando o rastro
num andar lento fundo e sedento
interrompido
fluido fruido
até o descontrole despótico do ímpeto
convulso
na alavanca soberana do ópio
deslizando demônios e papoulas dos olhos
até que a vida ganhe outro peso
e se perca
(da denúncia repressiva da cerca
desfalecida sobre o farpado das
formigas)
na enxurada de cálculos
na fluidez dos algarismos encachoeirados
no mimetismo do espasmo agudo
sem caminho de volta, sem escolta
ligústro de minha alma
(sacerdotisa
do pé que me lambe
serva
da língua que me pisa)
na aceitação da amputação das pernas
e um instante branco varrendo o cérebro
à devastação.
Massas exauridas despojadas da sova
na cama da solidão,
cada um sobrevive
ao que acredita,
até que os números lancem nova corda
de equações
em torno dos músculos órfãos.
Nesta casa de louças,
dissimulando demolições,
eu acredito nas ausências
mascadas no isolamento da orfandade
reconstruindo a lucidez da alma
sem o disfarce do apetite.


Shala Andirá









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